O Espelho (#PHPoemaday - Dia 3)

segunda-feira, junho 09, 2014

Era 2h da manhã quando ele caiu da cama. Inevitável consequência de uma noite que, mesmo havendo mal começado, fora completamente mal dormida. Não sabia se de alguma forma conseguiria voltar a repousar. A mente perturbava o pensamento de existência e, por osmose, prosseguia respirando como aquela que dali em diante jamais faria. Simultaneamente, o planeta ainda girava e o Sol ainda brilhava. Ele sabia disso porque através das cortinas esvoaçantes, causa do sopro de desgosto trazido pela natureza, entrava a luz daquilo que refletia como um espelho a grandiosidade do astro. Em sua fase minguante, o satélite encolhia-se em penumbras como queria fazer o homem ao deitar-se na noite anterior. Pensou em como alcançar esse estado ao levantar-se do tombo. O mundo girava diante de seus olhos e sua cabeça pesava tanto quanto a consciência.

Sentou-se na cama e respirou tão fundo quanto a dor no peito permitia. Seu pesar era quase fingido, ser humano o trouxe um pouco de dignidade, ainda que mínima. Relembrou as últimas horas e deixou desprender de si uma única lágrima. Desonrara sua mãe, sua senhora que partira não há muito, e que havia penado ao transmitir ao filho os valores que tanto presava. Num súbito praticamente involuntário, levantou-se em direção ao banheiro. Não enxergou-se no espelho, estava coberto de vergonha e de cansaço devido à sua vida mesquinha. Fazia tudo certo. Não cabulava o trabalho, das 8h as 18h era mais um braço para a multinacional que o sustentava. Lhe parecia errado, mas nunca questionava. Lavou o rosto com aquela água fria, liberando a maior pressão possível da torneira para que fosse possível lavar cada camada de sujeira em seu rosto. Lavou os olhos e então passou a enxergar, mas ainda estava lá o desespero, o desgosto, a vergonha, o medo. Nem a água mais pura ou o solvente mais forte poderia levar do seu corpo toda aquela imundice.

Quarenta e muitos anos do sujeito não fizeram dele a melhor opção para se formar uma família. Sem filho, sobrinhos ou amigos que suportariam seus vícios, a vida vazia era preenchida por cartas de baralho, doses acentuadas de gin e tônica e a mínima esperança de se ter uma companheira que não precisasse ser paga para lhe dar bom dia. Seu banheiro refletia todo o cuidado da vida que ele podia comprar. A limpeza impecável era mantida diariamente conforme regras ditadas pela governanta.  Sua escova de dentes estava sozinha em um suporte abaixo de um pequeno armário cor de grafite que guardava, entre itens de higiene como algodão, creme dental, curativos e hastes flexíveis, o combustível para sua simpatia com a clientela e fornecedores, armazenados em forma de cápsulas. Ao se olhar novamente pelo espelho, milimetricamente ajustado para a reflexão de um homem de meia idade com cerca de 1,87 metros, observou que, não bastasse a solidão de viver em um apartamento de 300 metros com a companhia esporádica de uma mulher de 54 anos que lhe era serventia, havia tirado a possibilidade de concretizar o sentimento mais próximo de paixão que já havia experimentado.

Piscou diversas vezes lubrificando os olhos e mirou-os, novamente, desacreditado. Não havia mais o que fazer. As dúvidas eram concretas, os sonhos estavam atrasados e estrago estava feito. Gentileza nunca fora seu forte, em sua mente neste mundo cada um era por si. Agora então, mais do que nunca. Não conseguia enxergar propósito dali pra frente, bolou planos e estratégias mas sentiu preguiça em realizar cada um deles. O copo de vidro que encontrava-se em seu lado direito encaixou-se em seus dedos grossos e enrugados. O turbilhão de pensamentos acentuava a sensação de fim e cada vez mais latejava a sua cabeça. Gritos, sussurros e súplicas de uma dama perturbada fazia tudo girar mais e mais até que soltou o seu próprio grito. O mais forte que já ouvira, que saíra do seu interior exalando a mediocridade vivida todos esses anos.

O que antes era um copo e um espelho eram agora cacos de vidro e reflexos despedaçados exibindo a desordem em que a sua vida se encontrava. Permitiu-se lentamente chorar e soluçar de ódio, remorso, amor e arrependimento, sem ordem e sem limite, como nunca havia feito antes. Permitiu-se sofrer sem vergonha, amolecendo suas pernas e caindo de joelhos olhando para o chão. Se antes só queria dormir, agora queria sumir, o que não queria era ver a sua exposição diante da sociedade dali pra frente. Os dedos enrugados pressionaram um pedaço considerável de vidro que foi de encontro ao pulso, caindo por completo no chão rústico coberto pelos cacos daquela noite. Ao se encontrarem, diria que também fez com ele o que fizera com ela. Talvez ela compreendesse e então o aceitaria. Sem forças, tombou de lado sua cabeça e, em seu reflexo em uma das partes perdidas do espelho, observou sua vida inteira. E, partir daquele momento, jamais seria o mesmo.

[Esse post faz parte do desafio #PHPoemaday. Para ver os outros textos do desafio, clique aqui.]
Tema 3: Espelho.

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2 comentários

  1. Bacana o poema... e bem legal o projeto! Tenho certeza que vc conseguirá atingir a meta. O novo Layout ficou ótimo e curti o novo nome do blog. Também mudei algumas coisinhas lá no meu... Apareça quando quiser! Sucesso! Bjos.


    http://bethpaes.blogspot.com.br/

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    1. Oi Beth! Que bom que gostou, obrigada :)
      Vou lá visitar, pode deixar!
      Beijos

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Espero que tenham gostado do Post! Retribuirei com muito carinho <3
Se tiverem sugestões fiquem à vontade!
Beijos!:*

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